domingo, outubro 24, 2004

Amar as casas do tempo

Em Portugal, o tempo nunca chega a habitar as casas. Ventos, esquecimento, o habitar pobre, na alma e na pedra, tudo isso faz das nossas casas lugares precocemente tristes onde a ausência nunca pode ser evocada.
As casas, e antes do mais a sua poética, não pertencem inteiramente a quem as habita. Também aquele que passa pelo seu exterior pode nelas instalar um olhar, uma memória, uma citação. Faz-se, assim, um espaço interior que não estava inteiramente lá, mas que se distribui enigmaticamente pelos quartos e nos convida a sentar em reflexão ou a deitar num repouso mais activo e mais livre.
As casas que são memorial não se oferecem apenas à figura que a cultura nos legou. Abrigam-nos também quando aí acorremos em busca do ser da nossa intimidade. Não queremos, portanto, fazer delas espaços públicos. Toda a habitação preserva rumores e imagens. A casa-memorial fá-los circular para além do tempo, transformando-se em verdadeira morada do amor. Lugar essencial, topofilia.

Mas os poderes públicos devem proteger essa intimidade, não ocupá-la nem destruí-la ou ser-lhe indiferente. Devem, sobretudo, impedir que aqueles que não sonham esvaziem o lugar onde essas casas se erguem. A casa de Almeida Garrett, na Rua Saraiva de Carvalho, está habitada por formas oníricas que a palavra do escritor aí deixou à nossa espera. Essa casa já não é a morada do cidadão João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett. É antes uma casa que nos espera porque um dia nela começou a viver uma memória solitária. Essa memória é a verdadeira intimidade da cultura.
A casa onde Garrett morou deve abrir-se às nossas memórias. Que nela não se instale a Câmara Municipal ou o Estado, que apenas devem proteger a porta que lhe dá acesso. E que não nos interroguem sobre o que lá vamos fazer. Essas perguntas já nos são colocadas pela casa desde há muito tempo.